Cesário Verde (1855 - 1886)
Vida e obra
José Joaquim Cesário Verde, filho de um
comerciante que possuía uma loja de ferragens em Lisboa e uma quinta em
Linda-a-Pastora, passa a infância entre o espaço citadino e o
espaço rural, binómio que será marcante na sua obra. Em 1873 matricula-se no
Curso Superior de Letras, que abandonará pouco depois, mas onde trava
conhecimento com algumas figuras da vida literária, como Silva Pinto, que se
tornará seu grande amigo. Durante a juventude tem a oportunidade de viajar
pelos grandes centros cosmopolitas europeus (Paris e Londres), na qualidade de
correspondente comercial da loja do seu pai, e deixa vários poemas dispersos
por jornais e revistas, como o Diário de Notícias, o Diário da Tarde,
Novidades, A Harpa, Tribuna, Mosaico, A Evolução,
Ocidente, Renascença, A Ilustração ou o Jornal de
Viagens, acolhidos com apreciações críticas quase sempre desfavoráveis
(Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida, Teófilo Braga) ou simplesmente ignorados. Em
1874, aparece anunciada a edição para breve de um livro de Cesário Verde,
intitulado Cânticos do Realismo, o que, porém, não sucederia. A partir
de 1879, desiludido com a incompreensão do mundo intelectual, Cesário dedica-se
cada vez mais a apoiar o pai na loja de ferragens e na exploração da quinta. Em
1882, morre-lhe um irmão, de tuberculose, tal como a irmã, falecida dez anos
antes. Aos 31 anos, ele próprio é vítima da mesma doença.
Em 1887, Silva Pinto publica a primeira edição,
limitada, de O Livro de Cesário Verde, destinada a ofertas a amigos do
escritor.
Só em 1901 é
dada à estampa uma segunda edição, já distribuída pelas livrarias.
A poesia de Cesário Verde é prefiguradora de uma modernidade estética só inteiramente reconhecida no século XX. Como afirmou Joel Serrão, "a leitura e o estudo dos testemunhos dos conviventes de Cesário dados a público aquando da morte do poeta provam que ninguém, ninguém mesmo, entendera a excepcional qualidade da poesia que o poeta negociante legara ao sempre incerto futuro".
A poesia de Cesário Verde é prefiguradora de uma modernidade estética só inteiramente reconhecida no século XX. Como afirmou Joel Serrão, "a leitura e o estudo dos testemunhos dos conviventes de Cesário dados a público aquando da morte do poeta provam que ninguém, ninguém mesmo, entendera a excepcional qualidade da poesia que o poeta negociante legara ao sempre incerto futuro".
Com efeito, se a representação pictórica dos ambientes e a descrição plástica da realidade, alicerçada em notações sensoriais:
Chegam do
gigo emanações sadias,
Oiço um canário - que infantil chilrada! -
Lidam ménages entre as gelosias.
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.
Oiço um canário - que infantil chilrada! -
Lidam ménages entre as gelosias.
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.
(de "Num bairro moderno")
o aproximam do
Realismo, do Parnasianismo
e até do Naturalismo em poesia, mediante a busca do célebre livro
baseado no "real" e na "análise"; se o interesse votado aos
fracos e humildes ecoa ainda influências do Romantismo social, como podemos ver
em:
Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.
(de
"Contrariedades)
não é menos
verdade que a imaginação e o trabalho do poeta conduzem quase sempre a uma
recriação impressionista ou fantasista da realidade.
Algumas das características principais na escrita de Cesário Verde
Algumas das características principais na escrita de Cesário Verde
Um
vocabulário objectivo; imagens visuais de modo a dar uma dimensão realista do
mundo ( poeta- pintor); o pormenor
descritivo; a mistura do físico e do moral; a combinação de sensações; o uso de
sinestesias, metáforas, comparações; o emprego de dois ou mais adjectivos a
qualificar o mesmo substantivo; a utilização de quadras, em versos
decassilábicos ou alexandrinos.
NUM
BAIRRO MODERNO
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga macadamizada.
Rez-de-chaussé repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço as porcelanas.
Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.
E eu, apesar do sol, examinei-a;
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia
E pendurando os seus bracinhos brancos.
Do patamar responde-lhe um criado:
"Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais." E muito descansado,
Atira um cobre ignóbil oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.
Subitamente - que visão de artista! -
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista;
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados.
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas - os rosários de olhos.
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.
E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
O Sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me prazenteira:
" Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?! ..."
Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantámos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
(...)
E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.
E, como as grossas pernas dum gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga macadamizada.
Rez-de-chaussé repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço as porcelanas.
Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.
E eu, apesar do sol, examinei-a;
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia
E pendurando os seus bracinhos brancos.
Do patamar responde-lhe um criado:
"Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais." E muito descansado,
Atira um cobre ignóbil oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.
Subitamente - que visão de artista! -
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista;
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados.
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas - os rosários de olhos.
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.
E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
O Sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me prazenteira:
" Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?! ..."
Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantámos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
(...)
E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.
E, como as grossas pernas dum gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.
ANÁLISE:
O poema "Num Bairro Moderno" é
exemplificativo de um dos traços característicos da poesia de Cesário Verde - a
deambulação. O poeta percorre o bairro enquanto se dirige para o emprego -
" (...) Eu descia, / Sem muita pressa, para o meu emprego,"
(est. III, vv. 2-3) e é o seu olhar que, como uma "câmara", vai
"focando" vários planos: a "casa apalaçada", os
"jardins" que se estendem ao longo da "larga rua macadamizada"
(est. I), os "rez-de-chaussée" cujas persianas que se abrem
deixam ver pormenores do interior das casas - "quartos estucados",
"papéis pintados", "porcelanas" (est. II).
Note-se que tanto estes pormenores do espaço interior como as referências
anteriores a elementos do espaço exterior sugerem bem-estar, o conforto que se
vive neste bairro moderno e burguês; o poeta explicita-o ao introduzir com um
comentário pessoal a terceira estrofe - " Como é saudável ter o seu
conchego / E a sua vida fácil!" Esta ideia de conforto é
sugerida não só pelas referências objectivas como pela linguagem expressiva
utilizada, nomeadamente por verbos e adjectivos: "com
brancuras quentes" - sinestesia, "Rez-de-chaussée
repousam sossegados" - hipálage - transfere-se para
as casas o ambiente de tranquilidade que se vive no seu interior e que é
acentuado pela associação pleonástica do verbo "repousar" e do
adjectivo "sossegado", "Reluzem, num almoço, as
porcelanas."
O brilho que emana das loiças é um dos elementos que
confere visualismo a esta descrição. O motivo do olhar domina a
composição: "Matizam", "fere a vista", "Reluzem",
"Notei", "examinei-a", são elementos lexicais
que confirmam a importância que a percepção visual detém no poema. Nas estrofes
IV e V o poeta refere-se à vendedeira como se o seu olhar se fixasse sobre uma
imagem da qual o poeta destaca aquilo que visualmente o impressiona - "uma
rapariga / Que no xadrez marmóreo duma escada, / como um
retalho de horta aglomerada, / Pousara, ajoelhando, a sua
giga." É de notar o forte contraste visual (sugerido) entre o branco e
o negro, dispostos em xadrez, e o colorido das frutas e legumes que estão
dentro da cesta. A esta associam-se outras sensações. Ainda na quinta estrofe é
o som que vem completar o quadro -"ressoam-lhe os tamancos";
na oitava estrofe a associação de sensações - sinestesia- é o processo
através do qual o poeta transmite a sua visão impressionista da
realidade - "Bóiam aromas, fumos de cozinha;" (olfacto),
"Com a cabaz às costas, e vergando, / Sobem padeiros, claros de
farinha;" (visão), "E às portas, uma ou outra campainha
/ Toca, frenética, - hipálage - de vez em quando."
(audição).
Os "padeiros", a "regateira"
são tipos sociais característicos do espaço urbano descrito. Gente do
povo, contrastam com a imagem elegante, requintada do bairro burguês. Os
padeiros "sobem" "vergando" sob o peso do
cabaz (est. VIII); a vendedeira, frágil, é obrigada a um trabalho pesado. É
sobre esta última que a atenção do poeta se detém: as indicações relativas ao
aspecto físico - "pequenina" (est. IV), "esguedelhada,
feia", "os (...) bracinhos brancos" (est. V), "magra",
"enfezadita" (est. XIX); ao vestuário - "rota"
(est. IV), "os tamancos", "abre-se-lhe o algodão azul
da meia" (est. V), "na sua chita" (est. XIX) -
caracterizam-na socialmente e reiteram uma ideia de debilidade, de fragilidade
(recurso a diminutivos) que acentua o peso da opressão de que é vítima. Essa
sugestão encontra-se igualmente nas expressões que relatam os movimentos e gestos
da rapariga sobretudo na expressividade dos verbos utilizados: "ajoelhando"
(est. IV), "se curva", "pendurando" (est. V),
"Nós levantámos todo aquele peso / Que ao chão de pedra resistia
preso / Com um enorme esforço muscular." (est. XIV), "Carregam
sobre a pobre caminhante" (est. XX). Contudo, apesar de feia e
desprezada é por ela que o sujeito poético nutre simpatia. A subjectividade do
poeta está presente em expressões como as da sexta estrofe em que o criado (um
outro tipo social), "do patamar", isto é, de cima, altivo,
"muito descansado", em contraste com a vendedeira,
"Atira um cobre ignóbil" (hipálage), integrando deste
modo no poema a crítica à desigualdade e injustiça social. Para além de
que é "sem desprezo" (est. XIV) que o poeta auxilia a "regateira",
comungando com ela dum mesmo esforço e tornando-se como que solidário da sua
condição. Aliás, a forte consciência da injustiça e de opressão parece ser
exclusiva do poeta, pois a rapariga enfrenta-os com a coragem e alegria -
"E pitoresca a audaz (...) / O peito erguido, os pulsos nas ilhargas, /
Duma desgraça alegre que me incita, / Ela apregoa (...) / As suas couves
repolhudas, largas."
Neste texto alternam as referências concretas a
elementos objectivos que compõem o espaço (físico e social) e a expressão
subjectiva do sujeito lírico. Este não se limita a descrever lugares e
personagens. A descrição é com frequência impressionista e aos
elementos descritos o poeta associa o seu estado psicológico, É o que acontece
na terceira estrofe quando, para além de comentar o que vê, o sujeito afirma
"quase sempre chega / Com as tonturas de uma apoplexia" ou se
mostra "contagiado" pela força interior da rapariga - "Duma
desgraça alegre que me incita" (est. XIX). No entanto, é nas
estrofes sete e nove a doze que a presença de um "eu" lírico assume
particular relevo:
"Subitamente - que visão de artista! - / Se eu
transformasse os simples vegetais, / A luz do sol, o intenso colorista, / Num
ser humano que se mova e exista / Cheio de belas proporções carnais?!"
(est. VII). Através da imaginação, o sujeito transfigura poeticamente a
realidade exterior, estabelecendo associações entre "os simples
vegetais" e partes de um corpo humano. Os verbos utilizados na estrofe
nove apontam precisamente para essa reconstrução do real elaborada mediante a
fantasia - "recompunha", "Achava", "Descobria".
A estas formas no Pretérito Imperfeito, sucede-se o Presente do Indicativo -
"São" (est. X) - estabelecendo-se assim um percurso entre o
acto de imaginar (de recompor a realidade) e a existência real, presente de um
universo, o universo poético que resulta da criação. Universo que, neste caso,
como é comum na poesia de Cesário Verde, assume contornos plásticos,
características pictóricas - são "os tons e as formas" (est.
IX), "as posições" (est. XI) dos frutos e dos vegetais que
possibilitam a associação de ideias na qual consiste esta transfiguração.