Pregado em São Luís do Maranhão, a 13 de
Junho de 1654, três dias antes de
se embarcar ocultamente para o Reino.
I
Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da
terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o
sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão
corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual
será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga,
ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os
pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa
salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem
receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem
outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes
imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga,
e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa
salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não
é tudo isto verdade? Ainda mal!
Suposto, pois, que ou o sal
não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há-de fazer a este sal e
que se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga,
Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum
valet ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus. «Se o
sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao
exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil para que seja
pisado de todos.» Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a não
pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser
posto sobre a cabeça que o pregador que ensina e faz o que deve, assim é
merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a
palavra ou com a vida prega o contrário.
Isto é o que se deve fazer
ao sal que não salga. E à terra que se não deixa salgar, que se lhe há-de
fazer? Este ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no Evangelho; mas temos
sobre ele a resolução do nosso grande português Santo António, que hoje
celebramos, e a mais galharda e gloriosa resolução que nenhum santo tomou.
Pregava Santo António em
Itália na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos; e como
erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o
santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe
não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António?
Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António
com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés a que se não
pegou nada da terra não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia?
Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a
prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia
naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou
somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as
praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a
altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh
maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a
ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os
pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água,
António pregava e eles ouviam.
Se a Igreja quer que
preguemos de Santo António sobre o Evangelho, dê-nos outro. Vos estis sal
terrae: É muito bom texto para os outros santos doutores; mas para Santo
António vem-lhe muito curto. Os outros santos doutores da Igreja foram sal da
terra; Santo António foi sal da terra e foi sal do mar. Este é o assunto que
eu tinha para tomar hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no pensamento
que, nas festas dos santos, é melhor pregar como eles, que pregar deles.
Quanto mais que o são da minha doutrina, qualquer que ele seja tem tido nesta
terra uma fortuna tão parecida à de Santo António em Arimino, que é força
segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja, e noutras, de
manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito clara, muito
sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a esta terra
para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que tenho colhido
desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado dele, vós o
sabeis e eu por vós o sinto.
Isto suposto, quero hoje, à
imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se
não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão.
Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria, quer dizer, Domina
maris: «Senhora do mar»; e posto que o assunto seja tão desusado, espero
que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.
II
Enfim, que havemos de pregar
hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas
qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao
pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta
dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa
mão falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos triste este sermão,
do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes
dois fins.
Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem
duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e
preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as
pregações do vosso pregador Santo António, como também as devem ter as de
todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem
para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto
pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar. Assim o diz o
grande Doutor da Igreja S. Basílio: Non carpere solum, reprehendereque
possumus pisces, sed sunt in illis, et quae prosequenda sunt imitatione:
«Não só há que notar, diz o Santo, e que repreender nos peixes, senão também
que imitar e louvar.» Quando Cristo comparou a sua Igreja à rede de pescar, Sagenae
missae in mare, diz que os pescadores «recolheram os peixes bons e
lançaram fora os maus»: Elegerunt bonos in vasa, malos autem foras
miserunt. E onde há bons e maus, há que louvar e que repreender. Suposto
isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em
dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas virtudes, no segundo
repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos às
obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las
depois de mortos.
Começando pois, pelos vossos
louvores, irmãos peixes, bem vos pudera eu dizer que entre todas as criaturas
viventes e sensitivas, vós fostes as primeiras que Deus criou. A vós criou
primeiro que as aves do ar, a vós primeiro que aos animais da terra e a vós
primeiro que ao mesmo homem. Ao homem deu Deus a monarquia e o domínio de
todos os animais dos três elementos, e nas provisões em que o honrou com
estes poderes, os primeiros nomeados foram os peixes: Ut praesit piscibus
maris et volatilibus caeli, et bestiis, universaeque terrae. Entre todos
os animais do Mundo, os peixes são os mais e os peixes os maiores. Que
comparação têm em número as espécies das aves e as dos animais terrestres com
as dos peixes? Que comparação na grandeza o elefante com a baleia? Por isso
Moisés, cronista da criação, calando os nomes de todos os animais, só a ela
nomeou pelo seu: Creavit Deus cete grandia. E os três músicos da
fornalha da Babilónia o cantaram também como singular entre todos: Benedicite,
cete et omnia quae moventur in aquis, Domino. Estes e outros louvores,
estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó
peixes; mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e
é também para os lugares em que tem lugar a adulação, e não para o púlpito.
Vindo pois, irmãos, às
vossas virtudes, que são as que só podem dar o verdadeiro louvor, a primeira
que se me oferece aos olhos hoje, é aquela obediência com que, chamados,
acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem,
quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca de seu servo
António. Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes e grande afronta e
confusão para os homens! Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar
da terra e ainda do Mundo, se pudessem, porque lhes repreendia seus vícios,
porque lhes não queria falar à vontade e condescender com seus erros, e no
mesmo tempo os peixes em inumerável concurso acudindo à sua voz, atentos e
suspensos às suas palavras, escutando com silêncio e com sinais de admiração
e assenso (como se tiveram entendimento) o que não entendiam. Quem olhasse
neste passo para o mar e para a terra, e visse na terra os homens tão
furiosos e obstinados e no mar os peixes tão quietos e tão devotos, que havia
de dizer? Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em
homens, e os homens não em peixes, mas em feras. Aos homens deu Deus uso de
razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e
os peixes o uso sem a razão.
Muito louvor mereceis,
peixes, por este respeito e devoção que tivestes aos pregadores da palavra de
Deus, e tanto mais quanto não foi só esta a vez em que assim o fizestes. Ia
Jonas, pregador do mesmo Deus, embarcado em um navio, quando se levantou
aquela grande tempestade; e como o trataram os homens, como o trataram os
peixes? Os homens lançaram-no ao mar a ser comido dos peixes, e o peixe que o
comeu, levou-o às praias de Nínive, para que lá pregasse e salvasse aqueles
homens. É possível que os peixes ajudam à salvação dos homens, e os homens
lançam ao mar os ministros da salvação?! Vede, peixes, e não vos venha
vanglória, quanto melhores sois que os homens. Os homens tiveram entranhas
para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o
levar vivo à terra.
Mas porque nestas duas
acções teve maior parte a omnipotência que a natureza (como também em todas
as milagrosas que obram os homens) passo às virtudes naturais e próprias
vossas. Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os
animais, se não domam nem domesticam. Dos animais terrestres o cão é tão
doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão
lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos
animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem connosco, o papagaio
nos fala, o rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e nos recreia; e até as
grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem
o sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá
se mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum
tão grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele. Os autores
comummente condenam esta condição dos peixes, e a deitam à pouca docilidade
ou demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes
louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que, se não fora
natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto
melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre! Se os animais da
terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas
pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola;
diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas
nas suas piozes; faça-lhes bufonarias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o
cão de lhes roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi
de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando
pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas
debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração da
carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com grades de
ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias,
vivereis só convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das portas a
dentro tendes o exemplo de toda esta verdade, o qual vos quero lembrar,
porque há filósofos que dizem que não tendes memória.
No tempo de Noé sucedeu o
dilúvio que cobriu e alagou o Mundo, e de todos os animais quais livraram
melhor? Dos leões escaparam dois, leão e leoa, e assim dos outros animais da
terra; das águias escaparam duas, fêmea e macho, e assim das outras aves. E
dos peixes? Todos escaparam, antes não só escaparam todos, mas ficaram muito
mais largos que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar. Pois se morreram
naquele universal castigo todos os animais da terra e todas as aves, porque
mão morreram também os peixes? Sabeis porquê? Diz Santo Ambrósio: porque os
outros animais, como mais domésticos ou mais vizinhos, tinham mais
comunicação com os homens, os peixes viviam longe e retirados deles.
Facilmente pudera Deus fazer que as águas fossem venenosas e matassem todos
os peixes, assim como afogaram todos os outros animais. Bem o experimentais
na força daquelas ervas com que, infeccionados os poços e lagos, a mesma água
vos mata; mas como o dilúvio era um castigo universal que Deus dava aos
homens por seus pecados, e ao Mundo pelos pecados dos homens, foi altíssima
providência da divina Justiça que nele houvesse esta diversidade ou
distinção, para que o mesmo Mundo visse que da companhia dos homens lhe viera
todo o mal; e que por isso os animais que viviam mais perto deles, foram
também castigados e os que andavam longe ficaram livres.
Vede, peixes, quão grande
bem é estar longe dos homens. Perguntando um grande filósofo qual era a
melhor terra do Mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens
mais longe. Se isto vos pregou também Santo António – e foi este um dos
benefícios de que vos exortou a dar graças ao Criador – bem vos pudera alegar
consigo, que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens. Para
fugir dos homens deixou a casa de seus pais e se recolheu a uma religião,
onde professasse perpétua clausura. E porque nem aqui o deixavam os que ele
tinha deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal.
Para fugir e se esconder dos homens mudou o hábito, mudou o nome, e até a si
mesmo se mudou, ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota,
com que não fosse conhecido nem buscado, antes deixado de todos, como lhe
sucedeu com seus próprios irmãos no capítulo geral de Assis. De ali se
retirou a fazer vida solitária em um ermo, do qual nunca saíra, se Deus como
por força o não manifestara e por fim acabou a vida em outro deserto, tanto
mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.
III
Este é, peixes, em comum o
natural que em todos vós louvo, e a felicidade de que vos dou o parabém, não
sem inveja. Descendo ao particular, infinita matéria fora se houvera de
discorrer pelas virtudes de que o Autor da natureza a dotou e fez admirável
em cada um de vós. De alguns somente farei menção. E o que tem o primeiro
lugar entre todos, como tão celebrado na Escritura, é aquele santo peixe de
Tobias a quem o texto sagrado não dá outro nome que de grande, como
verdadeiramente o foi nas virtudes interiores, em que só consiste a
verdadeira grandeza. Ia Tobias caminhando com o anjo S. Rafael, que o
acompanhava, e descendo a lavar os pés do pó do caminho nas margens de um
rio, eis que o investe um grande peixe com a boca aberta em acção de que o
queria tragar. Gritou Tobias assombrado, mas o anjo lhe disse que pegasse no
peixe pela barbatana e o arrastasse para terra; que o abrisse e lhe tirasse
as entranhas e as guardasse, porque lhe haviam de servir muito. Fê-lo assim
Tobias, e perguntando que virtude tinham as entranhas daquele peixe que lhe
mandara guardar, respondeu o anjo que o fel era bom para sarar da cegueira e
o coração para lançar fora os demónios: Cordis eius particulam, si super
carbones ponas, fumus eius extricat omne genus daemoniorum: et fel valet ad
ungendos oculos, in quibus fuerit albugo, et sanabuntur. Assim o disse o
anjo, e assim o mostrou logo a experiência, porque, sendo o pai de Tobias
cego, aplicando-lhe o filho aos olhos um pequeno do fel, cobrou inteiramente
a vista; e tendo um demónio, chamado Asmodeu, morto sete maridos a Sara,
casou com ela o mesmo Tobias; e queimando na casa parte do coração, fugiu
dali o Demónio e nunca mais tornou. De sorte que o fel daquele peixe tirou a
cegueira a Tobias, o velho, e lançou os demónios de casa a Tobias, o moço. Um
peixe de tão bom coração e de tão proveitoso fel, quem o não louvará mais?
Certo que se a este peixe o vestiram de burel e o ataram com uma corda,
parecia um retrato marítimo de Santo António.
Abria Santo António a boca
contra os hereges, e enviava-se a eles, levado do fervor e zelo da fé e
glória divina. E eles que faziam? Gritavam como Tobias e assombravam-se com
aquele homem e cuidavam que os queria comer. Ah homens, se houvesse um anjo
que vos revelasse qual é o coração desse homem e esse fel que tanto vos
amarga, quão proveitoso e quão necessário vos é! Se vós lhe abrísseis esse
peito e lhe vísseis as entranhas, como é certo que havíeis de achar e
conhecer claramente nelas que só duas cousas pretende de vós, e convosco: uma
é alumiar e curar vossas cegueiras, e outra lançar-vos os demónios fora de
casa.
Pois a quem vos quer tirar
as cegueiras, a quem vos quer livrar dos demónios perseguis vós?! Só uma
diferença havia entre Santo António e aquele peixe: que o peixe abriu a boca
contra quem se lavava, e Santo António abria a sua contra os que se não
queriam lavar.
Ah moradores do Maranhão,
quanto eu vos pudera agora dizer neste caso! Abri, abri estas entranhas;
vede, vede este coração. Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não vos prego a
vós, prego aos peixes.
Passando dos da Escritura
aos da história natural, quem haverá que não louve e admire muito a virtude
tão celebrada da rémora? No dia de um santo menor, os peixes menores devem
preferir aos outros. Quem haverá, digo, que não admire a virtude daquele
peixezinho tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder, que não
sendo maior de um palmo, se se pega ao leme de uma nau da Índia, apesar das
velas e dos ventos, e de seu próprio peso e grandeza, a prende e amarra mais
que as mesmas âncoras, sem se poder mover, nem ir por diante? Oh se houvera
uma rémora na terra, que tivesse tanta força como a do mar, que menos perigos
haveria na vida e que menos naufrágios no Mundo!
Se alguma rémora houve na
terra, foi a língua de Santo António, na qual, como na rémora, se verifica o
verso de São Gregório Nazianzeno: Lingua quidem parva est, sed viribus
omnia vincit. O Apóstolo Santiago, naquela sua eloquentíssima Epístola,
compara a língua ao leme da nau e ao freio do cavalo. Uma e outra comparação
juntas declaram maravilhosamente a virtude da rémora, a qual, pegada ao leme
da nau, é freio da nau e leme do leme. E tal foi a virtude e força da língua
de Santo António. O leme da natureza humana é o alvedrio, o piloto é a razão:
mas quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos precipitados do alvedrio?
Neste leme, porém, tão desobediente e rebelde, mostrou a língua de António
quanta força tinha, como rémora, para domar a fúria das paixões humanas.
Quantos, correndo fortuna na nau Soberba, com as velas inchadas do vento e da
mesma soberba (que também é vento), se iam desfazer nos baixos, que já
rebentavam por proa, se a língua de António, como rémora, não tivesse mão no
leme, até que as velas se amainassem, como mandava a razão, e cessasse a
tempestade de fora e a de dentro? Quantos, embarcados na nau Vingança, com a
artilharia abocada e os botafogos acesos, corriam infunados a dar-se batalha,
onde se queimariam ou deitariam a pique se a rémora da língua de António lhes
dão detivesse a fúria, até que, composta a ira e ódio, com bandeiras de paz
se salvassem amigavelmente? Quantos, navegando na nau Cobiça, sobrecarregada
até às gáveas e aberta com o peso por todas as costuras, incapaz de fugir,
nem se defender, dariam nas mãos dos corsários com perda do que levavam e do
que iam buscar, se a língua de António os não fizesse parar, como rémora, até
que, aliviados da carga injusta, escapassem do perigo e tomassem porto?
Quantos, na nau Sensualidade, que sempre navega com cerração, sem sol de dia,
nem estrelas de noite, enganados do canto das sereias e deixando-se levar da
corrente, se iriam perder cegamente, ou em Sila, ou em Caribdes, onde não aparecesse
navio nem navegante, se a rémora da língua de António os não contivesse, até
que esclarecesse a luz e se pusessem em vista.
Esta é a língua, peixes, do
vosso grande pregador, que também foi rémora vossa, enquanto o ouvistes; e
porque agora está muda (posto que ainda se conserva inteira) se vêem e choram
na terra tantos naufrágios.
Mas para que da admiração de
uma tão grande virtude vossa, passemos ao louvor ou inveja de outra não
menor, admirável é igualmente a qualidade daquele outro peixezinho, a que os
latinos chamaram torpedo. Ambos estes peixes conhecemos cá mais de fama que
de vista; mas isto têm as virtudes grandes, que quanto são maiores, mais se
escondem. Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a bóia sobre
a água, e em lhe picando na isca o torpedo começa a lhe tremer o braço. Pode
haver maior, mais breve e mais admirável efeito? De maneira que, num momento,
passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à
cana e da cana ao braço do pescador.Com muita razão disse que este vosso
louvor o havia de referir com inveja. Quem dera aos pescadores do nosso
elemento, ou quem lhes pusera esta qualidade tremente, em tudo o que pescam
na terra! Muito pescam, mas não me espanto do muito; o que me espanta é que pesquem
tanto e que tremam tão pouco. Tanto pescar e tão pouco tremer!
Pudera-se fazer problema;
onde há mais pescadores e mais modos e traças de pescar, se no mar ou na
terra? E é certo que na terra. Não quero discorrer por eles, ainda que fora
grande consolação para os peixes; baste fazer a comparação com a cana, pois é
o instrumento do nosso caso. No mar, pescam as canas, na terra, as varas, (e
tanta sorte de varas); pescam as ginetas, pescam as bengalas, pescam os
bastões e até os ceptros pescam, e pescam mais que todos, porque pescam
cidades e reinos inteiros. Pois é possível que, pescando os homens cousas de
tanto peso, lhes não trema a mão e o braço?! Se eu pregara aos homens e
tivera a língua de Santo António, eu os fizera tremer.
Vinte e dois pescadores
destes se acharam acaso a um sermão de Santo António, e às palavras do Santo
os fizeram tremer a todos de sorte que todos, tremendo, se lançaram a seus
pés; todos, tremendo, confessaram seus furtos; todos, tremendo, restituíram o
que podiam (que isto é o que faz tremer mais neste pecado que nos outros);
todos enfim mudaram de vida e de ofício e se emendaram.
Quero acabar este discurso
dos louvores e virtudes dos peixes com um, que não sei se foi ouvinte de
Santo António e aprendeu dele a pregar. A verdade é que me pregou a mim, e se
eu fora outro, também me convertera. Navegando de aqui para o Pará (que é bem
não fiquem de fora os peixes da nossa costa), vi correr pela tona da água de
quando em quando, a saltos, um cardume de peixinhos que não conhecia; e como
me dissessem que os Portugueses lhe chamavam quatro-olhos, quis
averiguar ocularmente a razão deste nome, e achei que verdadeiramente têm
quatro olhos, em tudo cabais e perfeitos. Dá graças a Deus, lhe disse, e
louva a liberalidade de sua divina providência para contigo; pois às águias,
que são os linces do ar, deu somente dois olhos, e aos linces, que são as
águias da terra, também dois; e a ti, peixezinho, quatro.
Mais me admirei ainda,
considerando nesta maravilha a circunstância do lugar. Tantos instrumentos de
vista a um bichinho do mar, nas praias daquelas mesmas terras vastíssimas,
onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes
há tantos séculos! Oh quão altas e incompreensíveis são as razões de Deus, e
quão profundo o abismo de seus juízos!
Filosofando, pois, sobre a
causa natural desta providência, notei que aqueles quatro olhos estão
lançados um pouco fora do lugar ordinário, e cada par deles, unidos como os
dois vidros de um relógio de areia, em tal forma que os da parte superior
olham direitamente para cima, e os da parte inferior direitamente para baixo.
E a razão desta nova arquitectura, é porque estes peixinhos, que sempre andam
na superfície da água, não só são perseguidos dos outros peixes maiores do
mar, senão também de grande quantidade de aves marítimas, que vivem naquelas
praias; e como têm inimigos no mar e inimigos no ar, dobrou-lhes a natureza
as sentinelas e deu-lhes dois alhos, que direitamente olhassem para cima,
para se vigiarem das aves, e outros dois que direitamente olhassem para
baixo, para se vigiarem dos peixes.
Oh que bem informara estes
quatro olhos uma alma racional, e que bem empregada fora neles, melhor que em
muitos homens! Esta é a pregação que me fez aquele peixezinho, ensinando-me
que, se tenho fé e uso da razão, só devo olhar direitamente para cima, e só
direitamente para baixo: para cima, considerando que há Céu, e para baixo,
lembrando-me que há Inferno. Não me alegou para isso passo da Escritura; mas
então me ensinou o que quis dizer David em um, que eu não entendia: Averte
oculos meos, ne videant vanitatem. «Voltai-me, Senhor, os olhos, para que
não vejam a vaidade.»
Pois David não podia voltar
os seus olhos para onde quisesse?! Do modo que ele queria, não. Ele queria
voltados os seus olhos, de modo que não vissem a vaidade, e isto não o podia
fazer neste Mundo, para qualquer parte que voltasse os olhos, porque neste Mundo
«tudo é vaidade»: Vanitas vanitatum et omnia vanitas. Logo, para não
verem os olhos de David a vaidade, havia-lhos de voltar Deus de modo que só
vissem e olhassem para o outro Mundo em ambos seus hemisférios; ou para o de
cima, olhando direitamente só para o Céu, ou para o de baixo, olhando
direitamente só para o Inferno. E esta é a mercê que pedia a Deus aquele
grande profeta, e esta a doutrina que me pregou aquele peixezinho tão
pequeno.
Mas ainda que o Céu e o
Inferno se não fez para vós, irmãos peixes, acabo, e dou fim a vossos
louvores, com vos dar as graças do muito que ajudais a ir ao Céu, e não ao
Inferno, os que se sustentam de vós. Vós sois os que sustentais as Cartuxas e
os Buçacos, e todas as santas famílias, que professam mais rigorosa austeridade;
vós os que a todos os verdadeiros cristãos ajudais a levar a penitência das
quaresmas; vós aqueles com que o mesmo Cristo festejou a Páscoa as duas vezes
que comeu com seus discípulos depois de ressuscitado. Prezem-se as aves e os
animais terrestres de fazer esplêndidos e custosos os banquetes dos ricos, e
vós gloriai-vos de ser companheiros do jejum e da abstinência dos justos!
Tendes todos quantos sois tanto parentesco e simpatia com a virtude, que,
proibindo Deus no jejum a pior e mais grosseira carne, concede o melhor e
mais delicado peixe. E posto que na semana só dois se chamam vossos, nenhum
dia vos é vedado. Um só lugar vos deram os astrólogos entre os signos
celestes, mas os que só de vós se mantêm na terra, são os que têm mais
seguros os lugares do Céu. Enfim, sois criaturas daquele elemento, cuja
fecundidade entre todos é própria do Espírito Santo: Spiritus Domini
foecundabat aquas.
Deitou-vos Deus a bênção,
que crescêsseis e multiplicásseis; e para que o Senhor vos confirme essa
bênção, lembrai-vos de não faltar aos pobres com o seu remédio. Entendei que
no sustento dos pobres tendes seguros os vossos aumentos. Tomai o exemplo nas
irmãs sardinhas. Porque cuidais que as multiplica o Criador em número tão
inumerável? Porque são sustento de pobres. Os solhos e os salmões são muito
contados, porque servem à mesa dos reis e dos poderosos; mas o peixe que
sustenta a fome dos pobres de Cristo, o mesmo Cristo os multiplica e aumenta.
Aqueles dois peixes companheiros dos cinco pães do deserto, multiplicaram
tanto, que deram de comer a cinco mil homens. Pois se peixes mortos, que
sustentam os pobres, multiplicam tanto, quanto mais e melhor o farão os
vivos! Crescei, peixes, crescei e multiplicai, e Deus vos confirme a sua
bênção.
IV
Antes, porém, que vos vades,
assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas
repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira
cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros.
Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos
comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo
contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um
grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não
bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto
Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt,
sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens com suas más e perversas
cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.» Tão alheia
cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no
mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos,
vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer
a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos
peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos
homens.
Olhai, peixes, lá do mar
para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para
os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de
olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue
é o de cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes
todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes
aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação
nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer
e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o
miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os
testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os
oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o
curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a
mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da
casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que,
cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a
terra, e já o tem comido toda a terra.
Já se os homens se comeram
somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de
sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai,
peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo estava Job,
quando dizia: Quare persequimini me, et carnibus meis saturamini?
«Porque me perseguis tão desumanamente, vós, que me estais comendo vivo e
fartando-vos da minha carne?» Quereis ver um Job destes?
Vede um homem desses que
andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão
comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o
solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha,
come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores
os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos
senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado
nem sentenciado, e já está comido.
E para que vejais como estes
comidos na terra são os pequenos, e pelos mesmos modos com que vós comeis no
mar, ouvi a Deus queixando-se deste pecado: Nonne cognoscent omnes, qui
operantur iniquitatem, qui devorunt plebem meam, ut cibum panis?
«Cuidais, diz Deus, que não há-de vir tempo em que conheçam e paguem o seu
merecido aqueles que cometem a maldade?» E que maldade é esta, à qual Deus
singularmente chama maldade, como se não houvera outra no Mundo? E quem são aqueles
que a cometem? A maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a
cometem são os maiores, que comem os pequenos: Qui devorant plebem meam,
ut cibum panis.
Nestas palavras, pelo que
vos toca, importa, peixes, que advirtais muito outras tantas cousas, quantas
são as mesmas palavras. Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão
declaradamente a sua plebe: Plebem meam, porque a plebe e os plebeus,
que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na
república, estes são os comidos. E não só diz que os comem de qualquer modo,
senão que os engolem e os devoram: Qui devorant. Porque os grandes que
têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta a sua fome de comer
os pequenos um por um, ou poucos a poucos senão que devoram e engolem os
povos inteiros: Qui devorant plebem meam. E de que modo os devoram e
comem? Ut cibum panis: não como os outros comeres, senão como pão.
A diferença que há entre o
pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o
peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no ano; porém o pão
é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o
que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão
se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis
pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não
multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem: Qui
devorant plebem meam, ut cibum panis.
Parece-vos bem isto, peixes?
Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que
não, e com olhardes uns para os outros, vos estais admirando e pasmando de
que entre os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós
fazeis. Os maiores comeis os pequenos; e os muito grandes não só os comem um
por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença de
tempos, não só de dia, senão também de noite, às claras e às escuras, como
também fazem os homens.
Notai, peixes, aquela definição
de Deus: Rector maris atque terrae: «Governador do mar e da terra»;
para que não duvideis que o mesmo estilo que Deus guarda com homens na terra,
observa também convosco no mar. Necessário é logo que olheis por vós e que
não façais pouco caso da doutrina que vos deu o grande Doutor da Igreja Santo
Ambrósio, quando, falando convosco, disse: Cave nedum alium insequeris,
incidas in validiorem: «Guarde-se o peixe que persegue o mais fraco para
o comer, não se ache na boca do mais forte», que o engula a ele. Nós o vemos
aqui cada dia. Vai o xaréu correndo atrás do bagre, como o cão após a lebre,
e não vê o cego que lhe vem nas costas o tubarão com quatro ordens de dentes,
que o há-de engolir de um bocado. E o que com maior elegância vos disse
também Santo Agostinho: Praedo minoris fit praeda maioris. Mas não
bastam, peixes, estes exemplos para que acabe de se persuadir a vossa gula,
que a mesma crueldade que usais com os pequenos tem já aparelhado o castigo
na voracidade dos grandes?
Já que assim o experimentais
com tanto dano vosso, importa que de aqui por diante sejais mais repúblicos e
zelosos do bem comum, e que este prevaleça contra o apetite particular de
cada um, para que não suceda que, assim como hoje vemos a muitos de vós tão
diminuídos, vos venhais a consumir de todo. Não vos bastam tantos inimigos de
fora e tantos perseguidores tão astutos e pertinazes, quantos são os
pescadores, que nem de dia nem de noite deixam de vos pôr em cerco e fazer
guerra por tantos modos?! Não vedes que contra vós se emalham e entralham as
redes, contra vós se tecem as nassas, contra vós se torcem as linhas, contra
vós se dobram e farpam os anzóis, contra vós as fisgas e os arpões? Não vedes
que contra vós até as canas são lanças e as cortiças armas ofensivas? Não vos
basta, pois, que tenhais tantos e tão armados inimigos de fora, senão que
também vós de vossas portas a dentro o haveis de ser mais cruéis,
perseguindo-vos com uma guerra mais que civil e comendo-vos uns aos outros?
Cesse, cesse já, irmãos peixes, e tenha fim algum dia esta tão perniciosa
discórdia; e pois vos chamei e sois irmãos, lembrai-vos das obrigações deste
nome. Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e muito amigos todos,
grandes e pequenos, quando vos pregava Santo António? Pois continuai assim, e
sereis felizes.
Dir-me-eis (como também
dizem os homens) que não tendes outro modo de vos sustentar. E de que se
sustentam entre vós muitos que não comem os outros? O mar é muito largo,
muito fértil, muito abundante, e só com o que bota às praias pode sustentar
grande parte dos que vivem dentro nele. Comerem-se uns animais aos outros é
voracidade e sevícia, e não estatuto da natureza. Os da terra e do ar, que
hoje se comem, no princípio do Mundo não se comiam, sendo assim conveniente e
necessário para que as espécies se multiplicassem. O mesmo foi (ainda mais
claramente) depois do dilúvio, porque, tendo escapado somente dois de cada
espécie, mal se podiam conservar, se se comessem. E finalmente no tempo do
mesmo dilúvio, em que todos viveram juntos dentro na arca, o lobo estava
vendo o cordeiro, o gavião a perdiz, o leão o gamo, e cada um aqueles em que
se costuma cevar; e se acaso lá tiveram essa tentação, todos lhe resistiram e
se acomodaram com a ração do paiol comum que Noé lhes repartia. Pois se os
animais dos outros elementos mais cálidos foram capazes desta temperança,
porque o não serão os da água? Enfim, se eles em tantas ocasiões, pelo desejo
natural da própria conservação e aumento, fizeram da necessidade virtude,
fazei-o vós também; ou fazei a virtude sem necessidade e será maior virtude.
Outra cousa muito geral, que
não tanto me desedifica, quanto me lastima em muitos de vós é aquela tão
notável ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que
navegam para estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço
de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado
até tocar na água, e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e fica preso e
boqueando, até que, assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de
morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta?
Enganados por um retalho de pano, perder a vida?
Dir-me-eis que o mesmo fazem
os homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro exército,
metem-se os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e
porquê? Porque houve quem os engodou e lhes fez isca com dois retalhos de
pano. A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto e que mais
facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe por isco na ponta
desses piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou
branco, que se chama hábito de Malta, ou verde, que se chama de Avis. ou
vermelho, que se chama de Cristo e de Santiago; e os homens, por chegarem a
passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o
ferro. E depois que sucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali,
ou noutra ocasião ficou morto; e os mesmos retalhos de pano tornaram outra
vez ao anzol para pescar outros.
Por este exemplo vos
concedo, peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que
não foi este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão,
ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos, nem esta ambição de
hábitos.
Mas nem por isso vos negarei
que também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honrada e
mais ignoradamente. Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com
quê? Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um mestre de navio de
Portugal com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro sedas,
que já se lhes passou a era e não têm gasto; e que faz? Isca com aqueles
trapos aos moradores da nossa terra: dá-lhes uma sacadela e dá-lhes outra,
com que cada vez lhes sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que querem
parecer, todos esfaimados aos trapos, e ali ficam engasgados e presos, com
dívidas de um ano para outro ano, e de uma safra para outra safra, e lá vai a
vida. Isto não é encarecimento. Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou
na cana, ou no engenho, ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o
leva? Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os
escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas
nem as baixelas, nem as jóias; pois em que se vai e despende toda a vida? No
triste farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo o ano.
Não é isto, meus peixes,
grande loucura dos homens com que vos escusais? Claro está que sim; nem vós o
podeis negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por dois retalhos de
pano, quem tem obrigação de se vestir; vós, a quem Deus vestiu do pé até à
cabeça, ou de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de escamas
prateadas e doiradas, vestidos que nunca se rompem, nem gastam com o tempo,
nem se variam ou podem variar com as modas; não é maior ignorância e maior
cegueira deixardes-vos enganar ou deixardes-vos tomar pelo beiço com duas
tirinhas de pano? Vede o vosso Santo António, que pouco o pode enganar o
Mundo com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de que aquela
idade tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia de cónego
regrante; e depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era
muito custosa aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela
corda. Com aquela corda e com aquele pano, pescou ele muitos, e só estes se
não enganaram e foram sisudos.
V
Descendo ao particular,
direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós. E começando aqui pela
nossa costa: no mesmo dia em que cheguei a ela, ouvindo os roncadores e vendo
o seu tamanho, tanto me moveram o riso como a ira. É possível que sendo vós
uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar?! Se, com uma
linha de coser e um alfinete torcido, vos pode pescar um aleijado, porque
haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais. Dizei-me: o espadarte
porque não ronca? Porque, ordinariamente, quem tem muita espada, tem pouca
língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer
roncadores e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito
roncam. S. Pedro, a quem muito bem conheceram vossos antepassados, tinha tão
boa espada, que ele só avançou contra um exército inteiro de soldados
romanos; e se Cristo lha não mandara meter na bainha, eu vos prometo que
havia de cortar mais orelhas que a de Malco. Contudo, que lhe sucedeu naquela
mesma noite? Tinha roncado e barbateado Pedro que, se todos fraqueassem, só
ele havia de ser constante até morrer se fosse necessário; e foi tanto pelo
contrário, que só ele fraqueou mais que todos, e bastou a voz de uma
mulherzinha para o fazer tremer e negar. Antes disso já tinha fraqueado na
mesma hora em que prometeu tanto de si. Disse-lhe Cristo no horto que
vigiasse, e vindo de aí a pouco a ver se o fazia, achou-o dormindo com tal
descuido, que não só o acordou do sono, senão também do que tinha blasonado: Sic
non potuisti una hora vigilare mecum? Vós, Pedro, sois o valente que
havíeis de morrer por mim, «e não pudestes uma hora vigiar comigo»? Pouco há,
tanto roncar, e agora tanto dormir? Mas assim sucedeu. O muito roncar antes
da ocasião, é sinal de dormir nela. Pois que vos parece, irmãos roncadores?
Se isto sucedeu ao maior pescador, que pode acontecer ao menor peixe?
Medi-vos, e logo vereis quão pouco fundamento tendes de blasonar, nem roncar.
Se as baleias roncaram,
tinha mais desculpa a sua arrogância na sua grandeza. Mas ainda nas mesmas
baleias não seria essa arrogância segura. O que é a baleia entre os peixes,
era o gigante Golias entre os homens. Se o rio Jordão e o mar de Tiberíades
têm comunicação com o Oceano, como devem ter, pois dele manam todos, bem
deveis de saber que este gigante era a ronca dos Filisteus. Quarenta dias
contínuos esteve armado no campo, desafiando a todos os arraiais de Israel,
sem haver quem se lhe atrevesse; e no cabo, que fim teve toda aquela
arrogância? Bastou um pastorzinho com um cajado e uma funda, para dar com ele
em terra. Os arrogantes e soberbos tomam-se com Deus; e quem se toma com
Deus, sempre fica debaixo. Assim que, amigos roncadores, o verdadeiro conselho
é calar e imitar a Santo António. Duas cousas há nos homens, que os costumam
fazer roncadores, porque ambas incham: o saber e o poder. Caifás roncava de
saber: Vos nescitis quidquam. Pilatos roncava de poder: Nescis quia
potestatem habeo? E ambos contra Cristo. Mas o fiel servo de Cristo,
António, tendo tanto saber, como já vos disse, e tanto poder, como vós mesmos
experimentastes, ninguém houve jamais que o ouvisse falar em saber ou poder,
quanto mais blasonar disso. E porque tanto calou, por isso deu tamanho brado.
Nesta viagem, de que fiz
menção, e em todas as que passei a Linha Equinocial, vi debaixo dela o que
muitas vezes tinha visto e notado nos homens, e me admirou que se houvesse
estendido esta ronha e pegado também aos peixes. Pegadores se chamam estes de
que agora falo, e com grande propriedade, porque sendo pequenos, não só se
chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos costados. que
jamais os desferram. De alguns animais de menos força e indústria se conta
que vão seguindo de longe aos leões na caça, para se sustentarem do que a
eles sobeja. O mesmo fazem estes pegadores, tão seguros ao perto como aqueles
ao longe; porque o peixe grande não pode dobrar a cabeça, nem voltar a boca
sobre os que traz às costas, e assim lhes sustenta o peso e mais a fome.
Este modo de vida, mais
astuto que generoso, se acaso se passou e pegou de um elemento a outro, sem
dúvida que o aprenderam os peixes do alto, depois que os nossos Portugueses o
navegaram; porque não parte vice-rei ou governador para as Conquistas, que
não vá rodeado de pegadores, os quais se arrimam a eles, para que cá lhes
matem a fome, de que lá não tinham remédio. Os menos ignorantes, desenganados
da experiência, despegam-se e buscam a vida por outra via; mas os que se
deixam estar pegados à mercê e fortuna dos maiores, vem-lhes a suceder no fim
o que aos pegadores do mar.
Rodeia a nau o tubarão nas
calmarias da Linha com os seus pegadores às costas, tão cerzidos com a pele,
que mais parecem remendos ou manchas naturais, que os hóspedes ou
companheiros. Lançam-lhe um anzol de cadeia com a ração de quatro soldados,
arremessa-se furiosamente à presa, engole tudo de um bocado, e fica preso.
Corre meia companha a alá-lo acima, bate fortemente o convés com os últimos
arrancos; enfim, morre o tubarão, e morrem com ele os pegadores.
Parece-me que estou ouvindo
a S. Mateus, sem ser apóstolo pescador, descrevendo isto mesmo na terra.
Morto Herodes, diz o Evangelista, apareceu o Anjo a José no Egipto, e
disse-lhe que já se podia tornar para a pátria, porque «eram mortos todos
aqueles que queriam tirar a vida ao Menino»: Defuncti sunt enim qui
quaerebant animam Pueri. Os que queriam tirar a vida a Cristo menino,
eram Herodes e todos os seus, toda a sua família, todos os seus aderentes,
todos os que seguiam e pendiam da sua fortuna. Pois é possível que todos
estes morressem juntamente com Herodes?! Sim: porque em morrendo o tubarão,
morrem também com ele os pegadores: Defuncto Herode, defuncti sunt qui
quaerebant animam Pueri.
Eis aqui, peixinhos
ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida que
escolhestes. Tomai o exemplo nos homens, pois eles o não tomam em vós, nem
seguem, como deveram, o de Santo António.
Deus também tem os seus
pegadores. Um destes era David, que dizia: Mihi autem adhaerere Deo bonum
est. Peguem-se outros aos grandes da terra, que «eu só me quero pegar a
Deus». Assim o fez também Santo António; e senão, olhai para o mesmo Santo, e
vede como está pegado com Cristo e Cristo com ele. Verdadeiramente se pode
duvidar qual dos dois é ali o pegador: e parece que é Cristo, porque o menor
é sempre o que se pega ao maior, e o Senhor fez-se tão pequenino, para se
pegar a António. Mas António também se fez menor, para se pegar mais a Deus.
Daqui se segue, que todos os que se pegam a Deus, que é imortal, seguros
estão de morrer como os outros pegadores. E tão seguros, que ainda no caso em
que Deus se fez homem e morreu, só morreu para que não morressem todos os que
se pegassem a ele: Si ego me
quaeritis, sinite hos abire. «Se me buscais a mim, deixai ir a estes.» E
posto que deste modo só se podem pegar os homens, e vós, meus peixezinhos,
não, ao menos devereis imitar aos outros animais do ar e da terra, que quando
se chegam aos grandes e se amparam do seu poder, não se pegam de tal sorte
que morram juntamente com eles. Lá diz a Escritura daquela famosa árvore, em
que era significado o grande Nabucodonosor, que todas as aves do céu
descansavam sobre os seus ramos e todos os animais da terra se recolhiam à
sua sombra, e uns e outros se sustentavam de seus frutos: mas também diz que,
tanto que foi cortada esta árvore, as aves voaram e os outros animais
fugiram. Chegai-vos embora aos grandes; mas não de tal maneira pegados, que
vos mateis por eles, nem morrais com eles.
Considerai, pegadores vivos,
como morreram os outros que se pegaram àquele peixe grande, e porquê. O
tubarão morreu porque comeu, e eles morreram pelo que não comeram. Pode haver
maior ignorância que morrer pela fome e boca alheia? Que morra o tubarão porque
comeu, matou-o a sua gula; mas que morra o pegador pelo que não comeu, é a
maior desgraça que se pode imaginar! Não cuidei que também nos peixes havia
pecado original. Nós os homens, fomos tão desgraçados, que outrem comeu e nós
o pagamos. Toda a nossa morte teve princípio na gulodice de Adão e Eva; e que
hajamos de morrer pelo que outrem comeu, grande desgraça! Mas nós lavamo-nos
desta desgraça com uma pouca de água, e vós não vos podeis lavar da vossa
ignorância com quanta água tem o mar.
Com os voadores tenho também
uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, voadores, não vos fez Deus
para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e
o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar,
pois sois peixes. Se acaso vos não conheceis, olhai para as vossas espinhas e
para as vossas escamas, e conhecereis que não sois aves, senão peixes, e
ainda entre os peixes não dos melhores. Dir-me-eis, voador, que vos deu Deus
maiores barbatanas que aos outros de vosso tamanho. Pois porque tivestes
maiores barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas asas?! Mas ainda
mal, porque tantas vezes vos desengana o vosso castigo. Quisestes ser melhor
que os outros peixes, e por isso sois mais mofino que todos. Aos outros
peixes, do alto mata-os o anzol ou a fisga, a vós sem fisga nem anzol,
mata-vos a vossa presunção e o vosso capricho. Vai o navio navegando e o
marinheiro dormindo, e o voador toca na vela ou na corda, e cai palpitando.
Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os a isca; ao voador mata-o a
vaidade de voar, e a sua isca é o vento. Quanto melhor lhe fora mergulhar por
baixo da quilha e viver, que voar por cima das entenas e cair morto!
Grande ambição é que, sendo
o mar tão imenso, lhe não basta a um peixe tão pequeno todo o mar, e queira
outro elemento mais largo. Mas vedes, peixes, o castigo da ambição. O voador
fê-lo Deus peixe, e ele quis ser ave, e permite o mesmo Deus que tenha os
perigos de ave e mais os de peixe. Todas as velas para ele são redes, como
peixe, e todas as cordas, laços, como ave. Vê, voador, como correu pela posta
o teu castigo. Pouco há nadavas vivo no mar com as barbatanas, e agora jazes
em um convés amortalhado nas asas. Não contente com ser peixe, quiseste ser
ave, e já não és ave nem peixe; nem voar poderás já, nem nadar. A natureza
deu-te a água, tu não quiseste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo.
Peixes, contente-se cada um com o seu elemento. Se o voador não quisera
passar do segundo ao terceiro, não viera a parar no quarto. Bem seguro estava
ele do fogo, quando nadava na água, mas porque quis ser borboleta das ondas,
vieram-se-lhe a queimar as asas.
À vista deste exemplo,
peixes, tomai todos na memória esta sentença: Quem quer mais do que lhe
convém, perde o que quer e o que tem. Quem pode nadar e quer voar, tempo virá
em que não voe nem nade. Ouvi o caso de um voador da terra: Simão Mago, a
quem a arte mágica, na qual era famosíssimo, deu o sobrenome, fingindo-se que
ele era o verdadeiro filho de Deus, sinalou o dia em que aos olhos de toda
Roma havia de subir ao Céu, e com efeito começou a voar mui alto; porém a
oração de S. Pedro, que se achava presente, voou mais depressa que ele, e
caindo lá de cima o mago, não quis Deus que morresse logo, senão que aos
olhos também de todos quebrasse, como quebrou, os pés.
Não quero que repareis no
castigo, se não no género dele Que caia Simão, está muito bem caído; que
morra, também estaria muito bem morto, que o seu atrevimento e a sua arte
diabólica o merecia. Mas que de uma queda tão alta não rebente, nem quebre a
cabeça ou os braços, se não os pés?! Sim, diz S. Máximo, porque quem tem pés
para andar e quer asas para voar, justo é que perca as asas e mais os pés.
Elegantemente o Santo Padre: Ut qui paulo ante volare tentaverat, subito
ambulare non posset; et qui pennas assumpserat, plantas amitteret. Se
Simão tem pés e quer asas, pode andar e quer voar; pois quebrem-se-lhe as
asas para que não voe, e também os pés, para que não ande. Eis aqui, voadores
do mar, o que sucede aos da terra, para que cada um se contente com o seu
elemento. Se o mar tomara exemplo nos rios, depois que Ícaro se afogou no
Danúbio não haveria tantos Ícaros no Oceano.
Oh alma de António, que só
vós tivestes asas e voastes sem perigo, porque soubestes voar para baixo e
não para cima! Já S. João viu no Apocalipse aquela mulher cujo ornato
gastou todas as luzes ao Firmamento, e diz que «lhe foram dadas duas grandes
asas de águia»: Datae sunt mulieri alae duae aquilae magnae. E para
quê? Ut volaret in desertum: «Para voar ao deserto.» Notável cousa,
que não debalde lhe chamou o mesmo Profeta grande maravilha. Esta mulher
estava no Céu: Signum magnum apparauit in caelo, mulier amicta sole.
Pois se a mulher estava no Céu e o deserto na terra, como lhe dão asas para
voar ao deserto? Porque há asas para subir e asas para descer. As asas para
subir são muito perigosas, as asas para descer muito seguras; e tais foram as
de Santo António. Deram-se à alma de Santo António duas asas de águia, que
foi aquela duplicada sabedoria natural e sobrenatural tão sublime, como
sabemos. E ele que fez? Não estendeu as asas para subir, encolheu-as para
descer; e tão encolhidas que, sendo a Arca do Testamento, era reputado, como
já vos disse, por leigo e sem ciência. Voadores do mar (não falo com os da
terra), imitai o vosso santo pregador. Se vos parece que as vossas barbatanas
vos podem servir de asas, não as estendais para subir, porque vos não suceda
encontrar com alguma vela ou algum costado; encolhei-as para descer, ide-vos
meter no fundo em alguma cova; e se aí estiverdes mais escondidos, estareis
mais seguros.
Mas já que estamos nas covas
do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão polvo, contra o qual têm
suas queixas, e grandes, não menos que S. Basílio e Santo Ambrósio. O polvo com
aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios
estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a
mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou
desta hipocrisia tão santa, testemunham constantemente os dois grandes
Doutores da Igreja latina e grega, que o dito polvo é o maior traidor do mar.
Consiste esta traição do polvo primeiramente em se vestir ou pintar das
mesmas cores de todas aquelas cores a que está pegado. As cores, que no
camaleão são gala, no polvo são malícia; as figuras, que em Proteu são
fábula, no polvo são verdade e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se
está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo: e se está em
alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma
pedra. E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição, vai
passando desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu
próprio engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera
mais Judas? Não fizera mais, porque não fez tanto. Judas abraçou a Cristo,
mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com
os braços fez o sinal, e o polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é
verdade que foi traidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às
escuras, mas executou-a muito às claras. O polvo, escurecendo-se a si, tira a
vista aos outros, e a primeira traição e roubo que faz, é a luz, para que não
distinga as cores. Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas
em tua comparação já é menos traidor!
Oh que excesso tão afrontoso
e tão indigno de um elemento tão puro, tão claro e tão cristalino como o da
água, espelho natural não só da terra, senão do mesmo céu! Lá disse o Profeta
por encarecimento, que «nas nuvens do ar até a água é escura»: Tenebrosa
aqua in nubibus aeris. E disse nomeadamente nas nuvens do ar, para
atribuir a escuridade ao outro elemento, e não à água; a qual em seu próprio
elemento é sempre clara, diáfana e transparente, em que nada se pode ocultar,
encobrir nem dissimular. E que neste mesmo elemento se crie, se conserve e se
exercite com tanto dano do bem público um monstro tão dissimulado, tão
fingido, tão astuto, tão enganoso e tão conhecidamente traidor!
Vejo, peixes, que pelo
conhecimento que tendes das terras em que batem os vossas mares, me estais
respondendo e convindo, que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos,
embustes, ciladas e muito maiores e mais perniciosas traições. E sobre o mesmo
sujeito que defendeis, também podereis aplicar aos semelhantes outra
propriedade muito própria; mas pois vós a calais, eu também a calo. Com
grande confusão, porém, vos confesso tudo, e muito mais do que dizeis, pois
não o posso negar. Mas ponde os olhos em António, vosso pregador, e vereis
nele o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca
houve dolo, fingimento ou engano. E sabei também que para haver tudo isto em
cada um de nós, bastava antigamente ser português, não era necessário ser
santo.
Tenho acabado, irmãos
peixes, os vossos louvores e repreensões, e satisfeito, como vos prometi, às
duas obrigações do sal, posto que do mar, e não da terra: Vos estis sal
terrae. Só resta fazer-vos uma advertência muito necessária, para os que
viveis nestes mares. Como eles são tão esparcelados e cheios de baixios, bem
sabeis que se perdem e dão à costa muitos navios, com que se enriquece o mar
e a terra se empobrece. Importa, pois, que advirtais, que nesta mesma riqueza
tendes um grande perigo, porque todos os que se aproveitam dos bens dos
naufragantes, ficam excomungados e malditos.
Esta pena de excomunhão, que
é gravíssima, não se pôs a vós senão aos homens, mas tem mostrado Deus por
muitas vezes, que quando os animais cometem materialmente o que é proibido
por esta lei, também eles incorrem, por seu modo, nas penas dela, e no mesmo
ponto começam a definhar, até que acabam miseravelmente.
Mandou Cristo a S. Pedro que
fosse pescar, e que na boca do primeiro peixe que tomasse, acharia uma moeda,
com que pagar certo tributo. Se Pedro havia de tomar mais peixe que este,
suposto que ele era o primeiro, do preço dele e dos outros podia fazer o
dinheiro com que pagar aquele tributo, que era de uma só moeda de prata, e de
pouco peso. Com que mistério manda logo o Senhor que se tire da boca deste
peixe e que seja ele o que morra primeiro que os demais?
Ora estai atentos. Os peixes
não batem moeda no fundo do mar, nem têm contratos com os homens, donde lhes
possa vir dinheiro; logo, a moeda que este peixe tinha engolido, era de algum
navio que fizera naufrágio naqueles mares. E quis mostrar o Senhor que as
penas que S. Pedro ou seus sucessores fulminam contra os homens que tomam os
bens dos naufragantes, também os peixes por seu modo as incorrem morrendo
primeiro que os outros, e com o mesmo dinheiro que engoliram atravessado na
garganta.
Oh que boa doutrina era esta
para a terra, se eu não pregara para o mar! Para os homens não há mais
miserável morte, que morrer com o alheio atravessado na garganta; porque é
pecado de que o mesmo S. Pedro e o mesmo Sumo Pontífice não pode absolver. E
posto que os homens incorrem a morte eterna, de que não são capazes os
peixes, eles contudo apressam a sua temporal, como neste caso, se
materialmente, como tenho dito, se não abstêm dos bens dos naufragantes.
VI
Com esta última advertência
vos despido, ou me despido de vós, meus peixes. E para que vades consolados
do sermão, que não sei quando ouvireis outro, quero-vos aliviar de uma
desconsolação mui antiga, com que todos ficastes desde o tempo em que se
publicou o Levítico. Na lei eclesiástica ou ritual do Levítico,
escolheu Deus certos animais que lhe haviam de ser sacrificados; mas todos
eles ou animais terrestres ou aves, ficando os peixes totalmente excluídos
dos sacrifícios. E quem duvida que esta exclusão tão universal era digna de
grande desconsolação e sentimento para todos os habitadores de um elemento
tão nobre, que mereceu dar a matéria ao primeiro sacramento? O motivo
principal de serem excluídos os peixes, foi porque os outros animais podiam
ir vivos ao sacrifício, e os peixes geralmente não, senão mortos; e cousa
morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem chegue aos seus altares. Também
este ponto era muito importante e necessário aos homens, se eu lhes pregara a
eles. Oh quantas almas chegam àquele altar mortas, porque chegam e não têm
horror de chegar, estando em pecado mortal! Peixes, dai muitas graças a Deus
de vos livrar deste perigo, porque melhor é não chegar ao sacrifício, que
chegar morto. Os outros animais ofereçam a Deus o ser sacrificados; vós
oferecei-lhe o não chegar ao sacrifício; os outros sacrifiquem a Deus o
sangue e a vida; vós sacrificai-lhe o respeito e a reverência.
Ah peixes, quantas invejas
vos tenho a essa natural irregularidade! Quanto melhor me fora não tomar a
Deus nas mãos, que tomá-lo indignamente! Em tudo o que vos excedo, peixes,
vos reconheço muitas vantagens. A vossa bruteza é melhor que a minha razão e o
vosso instinto melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a
Deus com as palavras; eu lembro-me, mas vós não ofendeis a Deus com a
memória; eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu
quero, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade. Vós fostes criados por
Deus, para servir ao homem, e conseguis o fim para que fostes criados; a mim
criou-me para o servir a ele, e eu não consigo o fim para que me criou. Vós
não haveis de ver a Deus, e podereis aparecer diante dele muito confiadamente,
porque o não ofendestes; eu espero que o hei-de ver; mas com que rosto hei-de
aparecer diante do seu divino acatamento, se não cesso de o ofender? Ah que
quase estou por dizer que me fora melhor ser como vós, pois de um homem que
tinha as mesmas obrigações, disse a Suma Verdade, que «melhor lhe fora não
nascer homem»: Si natus non fuisset homo ille. E pois os que nascemos
homens, respondemos tão mal às obrigações de nosso nascimento, contentai-vos,
peixes, e dai muitas graças a Deus pelo vosso.
Benedicite, cete et omnia
quae moventur in aquis, Domino: «Louvai, peixes, a Deus,
os grandes e os pequenos», e repartidos em dois coros tão inumeráveis,
louvai-o todos uniformemente. Louvai a Deus, porque vos criou em tanto
número. Louvai a Deus, que vos distinguiu em tantas espécies; louvai a Deus,
que vos vestiu de tanta variedade e formosura; louvai a Deus, que vos
habilitou de todos os instrumentos necessários à vida; louvai a Deus, que vos
deu um elemento tão largo e tão puro; louvai a Deus, que, vindo a este Mundo,
viveu entre vós, e chamou para si aqueles que convosco e de vós viviam;
louvai a Deus, que vos sustenta; louvai a Deus, que vos conserva; louvai a
Deus, que vos multiplica; louvai a Deus, enfim, servindo e sustentando ao
homem, que é o fim para que vos criou; e assim como no princípio vos deu sua
bênção, vo-la dê também agora. Amen. Como não sois capazes de Glória, nem de
Graça, não acaba o vosso Sermão em Graça e Glória.
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